Colóquio do Centro UFOLO em Ndalatando propõe integração de uma língua oficial bantu

ago 13, 2021 | Cultura, Direitos Humanos, Educação, Media, Notas da Imprensa

O escritor José Luís Mendonça propôs em Ndalatando a integração no artigo primeiro da Constituição angolana de uma língua oficial bantu, ao lado do português, durante a sua prelecção no terceiro colóquio “que é Ser Angolano? – Mentalidade e Aparências”, promovido pelo Centro UFOLO para a Boa Governação, na cidade de Ndaltando, no passado dia 11 de Agosto.

O uso exclusivo quotidiano, regular e prolongado da língua portuguesa, língua indo-europeia, formata no cidadão angolano uma mentalidade eurocêntrica, sob a aparência de africanidade. Esta mentalidade e visão do mundo eurocêntrica, inserida maioritariamente no modus vivendi das elites no poder, mas também de uma boa parte da população pela comunicação nacional em língua portuguesa, foi, segundo Mendonça, a principal causa do expatriamento,, sem quaisquer rebuços, nem peso de consciência, da riqueza de Angola para fora do continente africano.  “E o volume de transferências do erário angolano foi de tal magnitude, que não tem paralelo em nenhum outro país da África Austral”, caracterizou o escritor em Ndalatando.

Durante a sua comunicação intitulada “Reconciliação Linguística: Andaime da Construção da Angolanidade”, o escritor propõe a eleição de uma língua oficial bantu, a qual, em paralelo com a língua portuguesa, criará uma segunda fonologia do discurso oficial angolano. A par de muitos países que escolheram a língua maioritária para língua oficial, Angola pode eleger o Umbundu como a outra língua oficial, pois que, tendo em conta que as grandes línguas regionais de Angola são sete, torna-se impraticável o seu ensino numa província como Luanda, quem tem mais de sete milhões de habitantes oriundos de todo o país. Uma alternativa, mais demorada, seria a aceitação da proposta do linguista Carvalho Neto (Ya Ngene), de fundação do Kindu, uma futura língua bantu angolana, originada das três grandes línguas de Angola: Umbundu, Kimbundu e Kikongo.

Todo o angolano é Estado

Os debates ocuparam toda a manhã do dia 11 de Agosto, na Casa da Juventude de Ndalatando, no encontro promovido pelo UFOLO em parceria com o governo local, ali representado pela mais alta instância, Adriano Mendes de Carvalho. O governador do Kwanza-Norte manifestou a sua satisfação pelo facto de o colóquio levar à província outros saberes e despertar a intelectualidade e a juventude local para diálogo sobre uma das questões mais importantes da actualidade: a construção da angolanidade.

O colóquio de Ndalatando contou também com os contributos de Abreu Miguel, docente local, com uma comunicação sobre “A Influência dos Três Poderes no Sentimento de Pertença do Angolano”, bem como de António Costa, também docente, com uma intervenção sobre “Ser Angolano: uma Reflexão Sobre o Assunto”. João Baptista Lukombo, sociólogo radicado em Luanda, teceu considerações sobre Estabilidade, Segurança e Desenvolvimento.

Abreu Miguel destacou que, no processo de migração interna e reinserção da população, durante e pós-conflito, ocorreu, em primeiro lugar, a instalação da população e, só depois, a instalação das estruturas da governação. Este processo criou lacunas a vários níveis, sendo a do poder judicial uma das mais notórias, o que abriu caminho à aplicação da justiça por mãos próprias ou apenas com recurso ao direito costumeiro que, como já se constatou algumas vezes, fere os direitos fundamentais do cidadão. O prelector baseou a sua tese em torno da questão: “Os poderes legislativo, executivo e judicial têm sido o garante da construção de uma sociedade justa? O poder legislativo tem exercido o papel de fiscal do executivo, para garantir o seu papel na construção da angolanidade?”

Por seu turno, tem tido “o poder judicial autonomia financeira e administrativa para levar a cabo a sua função de aplicação da justiça?” Abreu Miguel defendeu a instalação de tribunais locais para prevenir abusos contra as pessoas.

Sobre o poder executivo, Abreu defendeu o combate às assimetrias regionais, pois constata-se que as localidades com maior progresso social são as grandes capitais, como Luanda, Huambo, Benguela ou Namibe.

O sociólogo João Baptista Lukombo, ao tecer considerações sobre a relação dialéctica entre estabilidade, segurança e desenvolvimento, frisou que Angola enfrenta um desafio sem precedentes chamado desemprego de 50% da população dos 15 aos 25 anos de idade, e 30% da população activa (a mais alta do mundo e da CPLP). Segundo Lukombo, o crescimento económico deve se reflectir na melhoria da qualidade de vida da população, mas verifica-se um fosso de desigualdade entre uma minoria rica e a maioria indigente, o que representa uma causa de explosão social, ou seja, uma bomba de efeito retardado. Esta situação só pode ser revertida com a melhoria da distribuição dos rendimentos, boa gestão e prestação de contas, concluiu Lukombo.

O último interveniente, António Costa, teceu algumas reflexões sobre “O que é Ser Angolano”. “Só quem se conhece é livre”, começou Costa, destacando o facto de quem já se sabe angolano, achar que não há necessidade de discutir a angolanidade, tal como os alunos da escola primária que, quando o professor lhes pede para levarem um ramo de tomateiro com o fruto, para estudo, acharem isso inútil, pois que o tomate é o que as mães mais cultivam nos quintais. “Porém, temos a necessidade de nos descobrirmos, e nos redescobrirmos”, realçou.

Costa enfatizou que ser angolano é, em primeiro lugar, ser cidadão, ter direito de reivindicar pela pátria e participar na edificação dela. Porém, fez notar que “vida política não é vida partidária”. Daí que, Costa defende a inclusão de todos, sem olhar para as diferenças de pele, raça, religião, língua, pertença partidária e outras, na construção do país, pois “todo o angolano é Estado e ser angolano é uma questão global e abrangente”.

A ética da angolanidade

O director provincial de Malanje da Cultura, Juventude e Desportos, Fernandes João, em representação do governador local, procedeu à abertura, no dia 10 de Agosto, na Biblioteca Provincial, do segundo colóquio do centro UFOLO do ciclo temático “O que é Ser Angolano?- Mentalidade e Aparências”. Para o director da Cultura, ser angolano é desafiante. “Angola requer que as nossas reflexões ultrapassem e vençam os limites da política”, afirmou. “Cada angolano deve encontrar a sua realização espiritual, material e outras, para que participe nesta Angola nova, com um elevado grau de satisfação”.

Carlos Xavier Lucas, docente naquela província, teceu considerações sobre “O Angolano Hoje e a sua Dimensão Ética”. O palestrante fez uma abordagem ético-moral que visa descrever o ser actual do angolano com relação à sua pátria, o próximo e as suas instituições, em comparação com o angolano no passado. Para falarmos do angolano hoje é importante transcendermos até à sua essência enquanto banto, substracto da sua alma. “O africano nasce na e para a comunidade que molda o seu ser, ligando-o a ela e causando nele uma forte identidade entre ele e a comunidade. Para Lucas, “os valores legados pelos ancestrais já não os temos. É evidente que a essência do agir angolano mudou de forma drástica, já que o mesmo deixou de ser um ser da comunidade para a comunidade e não vê o outro como outro, que é um imperativo do africano, quiçá, da pessoa humana. Como consequências, parte considerável do angolano adquiriu comportamentos que nada têm a ver com o legado afro-angolano, como a preguiça, o minimalismo, pressa de se realizar na vida de forma individual, corrupção, falta de sentimento pelo outro e de patriotismo. Para resgatar o ser genuíno do angolano é um imperativo fazemos uma regressão ao passado como fizeram os romanos no tempo do imperador Justiniano”.

O sociólogo João Baptista Lukombo na sua já difundida tese sobre “Estabilidade, Segurança e Desenvolvimento”, reafirmou que “muito cedo foi instalada no país uma cultura de governação que foge a todo o custo à forma de prestação de contas, caracterizada por um baixo nível de efectividade das políticas públicas e de excessiva corrupção. Este ambiente geral de fraca capacidade institucional e de excessiva corrupção tem feito com que as reformas necessárias, por mais boa vontade que se tenha, sejam retardadas, atenuadas ou de todo evitadas, perpetuando, ampliando e fortalecendo o subdesenvolvimento.”

Em Malanje, o escritor José Luís Mendonça voltou ao tema do primeiro colóquio em Luanda, “Ser Angolano: uma Ficção da Língua Portuguesa”, tendo disseratdo sobre o poder da língua portuguesa na sua ontologia estético-política ficcional das etno-nações para a formação do actual Estado angolano. Também aflorou a experiência vital do escritor no processo de comunicação intersubjectiva e internacional, e da obra literária enquanto veículo de cultura itinerante entre os agentes culturais e as nações.

O grosso da sua comunicação abordou a memória residual e a memória ficcionada pela língua e a memória adiada ou a construir com uma língua veicular bantu unitária, a par do português, num país que pode, a par doutras grandes nações, viver uma experiência comunicativa multilingue com o inglês – língua global de agora e do futuro – a marcar presença, dada a sua premência e relevância.

“Num país que, paradoxalmente, acelerou, no período pós-independência, o processo de subalternização do substracto linguístico bantu, uma reforma linguística do ensino conservaria a ficção da língua portuguesa, incontornável pelas determinações históricas do Encontro de Civilizações, porém, com o rasgo cultural de sermos globais pela anglofonia e cada vez mais africanos pela língua bantu recriada”.

Diálogo nacional

Os debates abertos nas duas capitais de província destacaram os seguintes aspectos:

  1. O Zaire é a única província com um nível de electrificação aceitável, embora outras regiões com avultados investimentos na energia hidro-eléctrica, como Malanje, ainda ficam às escuras;
  2. Apesar das dificuldades económicas e sociais que o país enfrenta, Angola tem 100 mil imigrantes portugueses, contra apenas 25 mil angolanos a residir em Portugal, bem como uma mistura de imigrantes de outras nações, com particular relevo para a RDC. O que atrai assim os estrangeiros a Angola, quando muitos jovens angolanos sonham em emigrar para a Europa?
  3. O ensino das línguas bantu nunca se constituiu um factor de secessão, o seu adiamento, pelo contrário, é que pode provocar um sentimento de exclusão das etno-nações;
  4. Urge africanizar o sistema de ensino angolano, com a valorização das línguas bantu;
  5. Verifica-se uma excessiva partidarização da vida social, em que a militância, 46 anos depois da independência, ainda se sobrepõe à cidadania;
  6. Os jovens propõem uma amenização do discurso público dos dirigentes, por acharem que não há um enquadramento jurídico que relaciona o direito de manifestação com o conceito de “arruaceiro”.

Depois deste périplo, que teve o seu início em Luanda, no passado dia 25 de Junho de 2021, o Centro UFOLO para a Boa Governação, dirigido pelo jornalista e activista social Rafael Marques, dará continuidade, em todo o país, ao ciclo de conferências intitulado “O que é Ser Angolano? Mentalidade e Aparências”, com vista a congregar a sociedade civil em torno do diálogo sobre as metamorfoses da angolanidade.

 

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