Direito em acção: do formalismo
constitucional ao diálogo social

dez 8, 2020 | Biblioteca, Destaque, Documentação

Leia aqui, na integra, a contribuição do rapper MCK durante o Encontro para a Cidadania e Segurança Pública, organizado pelo UFOLO no passado dia 28 de Novembro.

 

Direito em acção: do formalismo constitucional ao diálogo social

O Direito revela-se nos tempos de tensão. Quando tudo corre bem, ninguém se lembra de ir ver as normas, é quando há conflitos e disputas que o Direito entra em acção para os tentar resolver.

É esta função prática de resolução de conflitos e ordenação da sociedade que actualmente chama qualquer cultor do Direito e o obriga a pensar como na vida concreta se vão aplicar as normas.

Em relação aos acontecimentos dos últimos tempos existem várias normas constitucionais com relevo.

A primeira regra é a que se encontra no artigo 47.º da Constituição Angolana (CRA) e que garante o direito de manifestação e reunião. Esta norma é de aplicação directa e só pode ser suspensa nos casos previstos no artigo 58.º (estado de guerra, estado de sítio e estado de emergência). Sobre este artigo já muito foi dito e escrito. Apenas sublinhar o essencial: o direito à manifestação não pode ser retirado aos cidadãos a não ser nos casos já elencados. Contudo, pode ser sujeito a condicionantes de várias ordens para garantir outros direitos, e a manifestação tem de ser sempre pacífica. A violência ou intenção de violência retira qualquer manifestação do âmbito da protecção constitucional.

A segunda regra constitucional que teremos de fazer referência encontra-se em dois preceitos complementares da CRA (o artigo 30.º e o artigo 77.º) que consagram o direito à vida e à saúde. Na presente situação em Angola, e aliás no mundo, muitos alegam, que o direito de manifestação colide com o direito à vida e à saúde, e que este último deve prevalecer. Se assim se considerar, o que os poderes constitucionais têm de é declarar o estado de emergência e suspender o direito de manifestação para fazer garantir o direito à saúde e vida. Se não o fizerem-como acontece neste momento em Angola,  a solução nunca é acabar com o direito de manifestação, mas estabelecer critérios de concordância prática para a efectivação de ambos os direitos.

Por exemplo, é perfeitamente aceitável que se obrigue que cada participante de uma manifestação mantenha em relação ao seu parceiro uma distância de dois metros ou que cada um utilize máscaras e mesmo que passe gel nas mãos de 15 em 15 minutos. No fundo, que a manifestação não se torne uma concentração perigosa para a saúde pública de pessoas.

É na concretização destes limites que fazemos entrar mais um grupo de normas constitucionais. Os artigos 209.º e 210.º que cometem à Polícia Nacional as tarefas de garantir a ordem pública e assegurar o respeito pela CRA e demais leis. Quer isto dizer que a Polícia Nacional está na linha da frente da protecção da CRA e da Ordem Jurídica. E no caso presente, que estamos a discutir, relativamente ao estabelecimento no terreno da concordância prática entre o direito de manifestação e o direito à vida e saúde, o papel da Polícia é fulcral.

O que percebemos desta enumeração de normas é que o Direito dá-nos guias, mas não dá, em casos de conflitos de direitos fundamentais ou noutras situações difíceis, respostas concretas. As respostas têm de ser encontradas no diálogo e interacção entre cidadãos, neste caso, entre sociedade civil, activistas e polícia. Os limites estão traçados. Não pode haver violência, tem de se respeitar o direito à manifestação e o direito à saúde. A partir daí temos de sair do formalismo e entrar na vida. É o direito em acção.

Consequentemente, o mais importante é estabelecer uma plataforma de monitorização e mediação entre a Polícia, os activistas e a sociedade civil que esteja apta a concretizar os critérios práticos de actuação. Por um lado, a Polícia deve usar apenas a força adequada e não mais do que isso para garantir a ordem (nada de balas reais ou uso excessivo de meios militares), por outro lado, as manifestações devem ser pacíficas e respeitar as regras de saúde pública razoáveis em vigor.

Neste sentido, o Direito conduz-nos para o diálogo social e a criação de um Comité de Conciliação Social em que tenham lugar os representantes da sociedade que pretendam realizar manifestações e da Polícia Nacional de forma a determinar na prática as regras a seguir e a monitorizar as violações dos direitos fundamentais que ocorram. Um Comité de Conciliação Social que funcione em permanência, antes, durante e depois das manifestações e permita que tudo decorra dentro dos valores constitucionais.

Se o Direito estabelece as grandes linhas, é o bom senso cívico que determina os comportamentos concretos e é sobre eles que nos devemos debruçar e sobre os quais devemos estar atentos.

 

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