Uma capela de jazz para dois Paulos

jan 5, 2021 | Artigos, Cultura

Por José Luís Mendonça

Num ano marcado pela inesperada partida de alguns expoentes da cultura angolana, vimos descer aos infernos galácticos dois artistas plásticos moduladores de uma janela contrastante de germinações ultra-sensíveis na paisagem pictórica. Vimos partir Paulo Kapela e Paulo Jazz, dois Paulos da pintura angolana pouco reconhecidos e protegidos em vida. Os dois, curiosa e paradoxalmente, acabaram os seus dias encafuados entre as velhas e grossas paredes do histórico edifício onde se situa a UNAP – União Nacional dos Artistas Plásticos!

 

KAPELA

O artista plástico Paulo Kapela, nascido no Uíge, em 1947, e considerado o pai espiritual da arte contemporânea em Angola, morreu em devida glória, agraciado com o Prémio Nacional de Cultura e Artes, edição de 2020, na categoria de Artes Visuais e Plásticas.

A nota de imprensa do júri anunciou-o como tendo “um lugar de excepção no contexto artístico angolano e cuja trajectória se confunde com a história recente de Angola. Através de uma prática artística ecléctica, misturando objectos e referências aparentemente díspares e discordantes, Kapela tornou-se, no seu lendário estúdio-casa no edifício da UNAP, um Mestre para toda uma geração de artistas mais jovens…”

Mestre Kapela expõe internacionalmente desde 1995, e, como refere Dominick Tanner, director-geral do ELA – Espaço Luanda Arte: “Infelizmente, no dia do anúncio do prémio, o Kapela Paulo deu entrada na Clínica Endiama com teste positivo da Covid-19.”

No site Buala, podemos ler como era o atelier do Mestre Paulo Kapela, “no qual só entra quem souber como chamá-lo numa entrada quase invisível. Ao aceder ao seu atelier, parece que se chega a um outro mundo, mas também a uma espécie de igreja. (…) O espaço de Kapela é preenchido por arranjos surreais de coisas encontradas na rua, usando inimagináveis elementos para criar representações de seu universo interior, que combina a filosofia Bantu, o Catolicismo, o Rastafarianismo e iconografias socialistas com um forte sentido de louvor à cultura local. Elementos profanos, por exemplo anúncios publicitários, são colocados ao lado de objectos religiosos tais como crucifixos e velas. Entre as obras de arte há muitos quadros de vários tamanhos, fabricados ao estilo da escola de Brazzaville Poto-Poto, onde Kapela trabalhou antes de vir para Luanda. Mas o que realmente chama a atenção são as inúmeras colagens, retratando personalidades da vida de todos os dias, mas também políticos e pessoas da mídia internacional.”

Autodidacta, Paulo Kapela começou a pintar em 1960 na Escola POTO-POTO (Brazzaville – República do Congo). Fixou-se em Luanda em 1996. A sua marginalidade, impulsionada pelo facto de não dominar o português numa Luanda arreigada a hábitos assimilados (expressa-se maioritariamente em kikongo, lingala e francês), pode também estar associada ao estigma que até hoje assalta os angolanos originários das províncias do Zaire e do Uíge.

 

JAZZ

O pintor e desenhista Paulo Jazz, nascido em Luanda, em 1957, co-fundador da UNAP, desenvolveu o seu trabalho baseado na corrente artística cubista, tendo conquistado prémios relevantes dentro e fora do país, com destaque para o do Centro Internacional de Civilizações Bantu (CICIBA).

Sobre este outro Paulo, o artista plástico angolano Kidá escreveu: “As suas belas e interessantes obras pictóricas figuram em grandes galerias e coleccionadores de Arte do país e no mundo, sendo, por isso mesmo, uma referência incontornável da plasticidade angolana, recomendável para estudos nas Escolas de Arte de Angola. Nos últimos anos, o malogrado Paulo Jazz fixara residência nas ruínas da UNAP, onde tinha um ateliê, que lhe servia de suporte para as suas criações artísticas! Admirado por muitos, mas também incompreendido por outros tantos, eu tive uma relação de proximidade profissional aceitável, pois tive o privilégio de muito frequentar o seu espaço de trabalho, onde tinha de tudo um pouco, desde telas acabadas e por pintar, objectos de trabalho e pessoais, enfim, até colecção de discos long play, com predominância para os estilos rock’n’roll e reggae, estilos musicais que ele muito adorava! (…) Paulo Jazz passou por dificuldades extremas de vida, onde telas que em situação normal valeriam alguma fortuna, mas por uma questão de sobrevivência, teve que se desfazer de certas obras pictóricas, vendendo-as a determinados compradores, ao desbarato! Não tinha outra saída! Tinha que continuar a viver.”

 

CAPELA SEM CULTO

Naquela capela do edifício secular onde até pés de mulemba crescem no frontispício, nem a própria UNAC, vizinha de porta dos malogrados, conseguiu dar uma mão a estas duas toupeiras da Arte angolana.

A pintura e os desenhos de Kapela faziam lembrar um templo esotérico. Algo de místico exalava da arrumação dos quadros no rectângulo do pequeno vão do prédio da UNAC.

O traço de Paulo andou meio fugidio dos velhos pormenores de tipo jazz do início de carreira.

A ambos faltou-lhes a paciente entrega de um guru capaz de lhes despertar o fio da vida. Que, segundo o iogui indiano Vivekenanda, está no controle da respiração. Tal como as vidas deles, os seus funerais foram obscuros. Um, por causa da Covid-19. O outro, por causa da saliência tresloucada do olhar sob a farta cabeleira.

 

 

Fotos: Santo César e Matocha SS

 

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