Por José Luís Mendonça
Durante décadas, em Angola e no mundo, o corpo quase nu da mulher jovem – a troco de uma cereja monetária – foi (br)utilizado nas campanhas publicitárias de marcas de cerveja. Uma crescente onda de protestos por parte de jornalistas mais atentos à coisificação da mulher na publicidade provocou uma mudança do paradigma publicitário da indústria cervejeira. Hoje, porém, falhos de imaginação alternativa e do domínio da Cultura e da História secular de Angola, os fazedores de hábitos consumistas enveredam para uma analogia muito mais detractora. Desta feita, com o slogan “SOMOS ANGOLANOS, SOMOS CUCA”, os proprietários, ou, como agora é chique dizer-se, os accionistas da Companhia União de Cervejas de Angola (CUCA), exibem uma impressão litográfica descartável de angolanidade. “SOMOS ANGOLANOS, SOMOS CUCA” carrega e transmite uma mensagem de profanação do conceito de pátria.
Em termos culturais, o slogan publicitário “SOMOS ANGOLANOS, SOMOS CUCA” representa uma tentativa absurda de relacionar o gosto gelado e efervescente do cereal fermentado com a ideia de pátria angolana.
O sentimento de pertença a uma pátria, ou a uma nação (em Angola, a nação culturalmente exposta é um pluralismo) nasce e projecta-se num quadro de horizontes afectivos que incluem a(s) língua(s) sob a pressão histórica do português, a(s) história(s) reunidas pelo império colonial português e liquidificadas pelo impulso centrípeto do movimento de libertação e do pós-independência, as artes, o comércio a céu aberto, o parentesco e a solidariedade na luta pela sobrevivência, elementos da chamada angolanidade em (des)construção. O slogan “SOMOS ANGOLANOS, SOMOS CUCA” postado em zonas nobres e milionárias da cidade capital, adquire um efeito que ultrapassa o mero incitamento gustativo para o consumo da cerveja, para atingir o ponto nevrálgico da angolanidade muito vulnerável na sua desconstrução enquanto património cultural imaterial.
O mesmo é dizer: “Somos Cuca e a pátria é um deserto”. Será Angola uma ficção histórico-cultural descartável, tal como o vasilhame da cerveja que se deita fora após consumido o etílico deslumbramento? Ou o modus vivendi que os senhores da Cuca projectam para os angolanos é a estupidificação mental, através do beijo anestésico da cerveja?
Qualquer que seja a resposta a estas questões espiritualmente avassaladoras, o que é certo é que uma análise em profundidade da mensagem espúria e da imagem especulativa que a enquadra e do artefacto milionário que lhe dá um estatuto de empório comercial na paisagem publicitária de Luanda conformam uma profanação do templo onde se constrói (ou se corrói) a alma angolana e cria um niilismo ontológico da cidadania.
A função poética da língua, pela metaforização das representações de angolano e de Cuca, acontece como o mito do Natal, transformado em mero consumismo circunstancial e datado, programando a alienação do consumidor. Agregada a função apelativa, elevada a uma estrutura multidimensional, o resultado é realmente avassalador, ao criar na mente dos angolanos uma ilusão de pátria borbulhando sob a espuma branca e gelada da bebida. A maioria dos angolanos – mais de 20 milhões de pobres – e até as classes com uma certa segurança alimentar, caem no logro da pátria descartável, a pátria sem alma, porque esta – a alma – construída por várias línguas bantu e a língua lusa e uma História de lutas internas sob o fogo cruzado do imperialismo global que, da África, muito recebe e pouco deu desde o século XV, esta alma que se expressa nos múltiplos diálogos comunitários, sociais e até políticos é uma alma invisível, plena de mistérios, mas também da mesma empatia histórica que fez Nzinga a Nkuvu receber os navegadores portugueses e até adoptar elementos da cultura europeia, tendo-se deixado baptizar como João I.
É esta idiossincrasia, esta bondade e simpatia angolanas que ainda perdura e faz com que imposições culturais alienígenas continuem a imperar no país, desta feita, no caso Cuca, através de um suporte à primeira vista “inocente”, por se tratar de mera publicidade. Mas será que, no campo da publicidade, vale tudo?
Cremos que não. Defendemos que a publicidade das empresas que ganham rodos de dinheiro em Angola seja encomendada a agências de publicidade angolanas. Seria uma forma de não continuar a deitar esse dinheiro lá fora. E mesmo estas agências angolanas, antes de produzirem os artefactos publicitários, se deviam socorrer dos conselhos dos agentes culturais nacionais. Porque o que a Cuca vem fazendo, desde a um tempo a esta parte, é uma invasão cultural – e porque não política? – da identidade angolana, tentando recriar uma nova imagem do ser angolano no mundo.
Reduzir a identidade nacional à imagem de uma marca de cerveja ultrapassa a materialidade apelativa da estrutura instalada no espaço público como peça gráfica de publicidade. Atinge a pátria angolana, de Cabinda ao Cunene e do mar ao Leste, com a sua carga de afectação neo-colonialista, ao pretender colocar no imaginário dos angolanos uma impressão visual-gustativa, uma liquidificação palatal de que “SOMOS ANGOLANOS, SOMOS CUCA”. “Kadyé tuji, home!”, diria a minha falecida avó.